A moça publica uma foto na praia — feliz, sorriso aberto, braços erguidos. E sem se depilar. Na era do compartilhamento, é claro, chovem comentários. Acho nojento, diz um deles. Ou Parabéns! Ou ainda: Nunca faria, mas respeito quem faz. Eca, feministas. Meu corpo, minhas regras. Querem só aparecer. Fez para ganhar likes. Até que chega aquele comentário apaziguador: ora, pessoal, feminismo é isso mesmo. Depila quem quer, não depila quem não quer.
E parece que há paz novamente no mundo cibernético e todas podemos dar as mãos e cantar Beyoncé em harmonia e celebrar nosso Girl Power.
Há algum tempo, passei a chamar esse fenômeno de feminismo faz-quem-quer, mas a realidade é que essa linha de pensamento vai ao encontro do feminismo liberal; aquele que defende que a equidade deve ser atingida com mudanças políticas, sem, contudo, romper com o sistema existente. Essa vertente valoriza a luta individual, compreendendo que a própria mulher é responsável por suas escolhas, assim como por derrubar as barreiras em seu caminho.
(Talvez o exemplo mais icônico que ilustre o feminismo liberal versus o feminismo radical seja o debate acerca da prostituição. Enquanto o primeiro defende a criação de leis que defendam as trabalhadoras, o último acredita que o próprio sistema que leva uma mulher a se prostituir — e, consequentemente, um homem a explorá-la — deve ser destruído).
Esse feminismo faz-quem-quer é reconfortante. Ele permite que nós identifiquemos uma situação de opressão e, ao mesmo tempo, nos sintamos absolutamente livres em nossa escolha de continuar sendo oprimidas.
Além disso, veja que sorte, é multiuso! O feminismo faz-quem-quer se aplica a qualquer situação: eu quero ir à academia cinco vezes por semana e ficar magra porque eu acho bonito, não para agradar ninguém. Eu quero ir maquiada à farmácia da esquina, e daí se não gosto da minha cara sem rímel e iluminador? Eu gosto de fazer chapinha no cabelo, não sou obrigada a curtir os cachos. Em outras, acho lindo, mas não combina comigo. Eu quero chegar em casa após oito horas de trabalho e cuidar do meu marido e dos filhos, porque isso faz com que eu me sinta uma boa esposa. Eu escolhi não assumir uma posição de liderança na minha empresa, porque optei por ser mãe.
Simples, né?
Entretanto, essa mentalidade impede qualquer reflexão mais profunda sobre as amarras que ainda controlam nosso desenvolvimento. Elas não são tão óbvias. Não enxergamos grandes sinais vermelhos gritando NÃO ULTRAPASSE. Em vez disso, somos influenciadas desde o nascimento pela mídia, a família, a escola, a publicidade, o comércio (aqui, acho importante lembrar que os culpados não são indivíduos. Essa é uma responsabilidade estrutural e, na maioria das vezes, aqueles que reproduzem o machismo sequer estão cientes disso). Quando chegamos à idade adulta, é fácil termos certeza de que tudo aquilo que nos tornamos, nos tornamos porque assim quisemos, quando na verdade somos condicionadas quanto ao que é belo, é aceitável, é bem-sucedido — e cremos em nossa independência para buscar essas coisas.
Quando bradamos "faz quem quer" nos comentários do Facebook ou na mesa de jantar, ignoramos toda a máquina que opera por detrás das cortinas.
Ignoramos uma cultura que fantasia com Lolitas, que inveja a juventude, que condena a mulher com rugas e cabelos brancos como "desleixada". E que se revela, também, pela busca de corpos femininos totalmente depilados, inocentes, infantis. Mulheres adultas têm pelos.
Ignoramos o mito do instinto materno, a construção social da infância, o discurso de que toda mulher nasceu para ser mãe, afinal, "ter um bebê é uma benção". Ignoramos a exclusão das mulheres mães de espaços públicos e de ambientes acadêmicos impedindo seu crescimento profissional. A tripla jornada de trabalho e os parceiros que "ajudam" na casa, mas que nunca fazem a lista de compras ou saem cedo de uma reunião para buscar a criança doente da creche.
Ignoramos a falta de modelos gordas, de protagonistas gordas, de mulheres gordas que sejam consideradas atraentes não apesar de seu peso ou sua forma, mas devido a elas. Que não interpretem a melhor amiga engraçada que está sempre tentando emagrecer. Ignoramos que existe uma confusão entre magreza e saúde e entre gordura e doença, que sentimos culpa ao comer um chocolate, que temos a necessidade constante de postar nossas idas à academia no Instagram em troca de reforço positivo. Ignoramos até mesmo que emagrecemos para nos encaixar em um antigo ideal de mulher indefesa, pequena, que não ocupa espaço, que precisa ser salva — a mulher musculosa também não é desejável.
Ignoramos os caminhos que nos trouxeram até aqui e acreditamos que nossas lutas individuais vão nos libertar. Contudo, só quem vence no feminismo faz-quem-quer é quem quer o que já é padrão.
É preciso pensar no por quê. Por que eu quero? O que me faz querer isso? O que eu acredito que vou ganhar com isso? Do que estou abrindo mão?
Precisamos problematizar tudo o que nos faça crer que nosso estado natural não é normal. Temos que perceber e admitir a insanidade de uma sociedade que nos faz olhar para nossos próprios corpos — saudáveis, funcionais — como falhos, insuficientes, vergonhosos. Porque, novidade!, é normal que pelos brotem das nossas pernas. E que sangue escorra todo mês. E que tenhamos celulite. E que nossas barrigas dobrem quando sentamos. E, ainda assim, esses são todos motivos frequentes para que uma mulher cerque sua liberdade: seja deixando de vestir uma peça de roupa, seja resolvendo não sair de casa.
E tudo bem se você decidir que realmente quer, acho eu. Ou que não quer, mas ainda não está pronta para dar o próximo passo. Eu, por exemplo, não consigo sair para trabalhar com o meu cabelo cacheado, depois de anos tentando desconstruir isso em mim. Mas estou trabalhando para reconhecer o que isso significa e como minha autoestima foi erguida em torno de um ideal que não corresponde ao que vejo no espelho. Um dia, tenho certeza, vou chegar lá.
Só o que posso dizer é que, nesse processo de desconstrução diária, ajuda procurar mulheres que inspirem você e que fujam dos padrões. Insira aquilo que te faz mais desconfortável na sua rotina; siga perfis diferentes no Instagram, coloque-se em discussões sobre o tema, questione suas amigas. Busque conhecimento sério, de fontes confiáveis.
Dê passos pequenos, mas dê algum passo. Com paciência. Nós passamos a vida inteira apreendendo o que é considerado normal, então dê tempo a si mesma para esquecer a lição. Por fim, sempre tente olhar além das escolhas que nos são oferecidas — elas costumam ser apenas o que nos é permitido, não o que pode ser conquistado.
Texto de Marcela Lorenzoni
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